Visit Iraq + Port of Memory



by Luís Miguel Oliveira, 
Cinemateca Portuguesa – Museu do cinema

A Cinemateca com o Indielisboa: Kamal Aljafari


24/31-05-2024
Pode-se descrever Visit Iraq como uma comédia, uma daquelas comédias (como tantos filmes ou segmentos de filmes de Tati) que amplificam a estranheza de um objecto implantado no espaço público no momento em que esse objecto deixa de cumprir a função a que estava destinado. O objecto é, neste caso, todo um edifício, o edifício que albergava a delegação em Genebra da companhia aérea estatal iraquiana, a Iraqi Airways. Em 2003 ficou subitamente vazio, os escritórios fecharam, os funcionários terão ido, eles próprios, visit Iraq, na sequência da queda de Saddam Hussein e do regime que o sustentava (ou que ele sustentava, hesitamos na fórmula mais correcta). Ficou ali, numa rua do centro de Genebra, não propriamente um elefante branco (não parece haver nada de especialmente imponente no edifício), mas uma espécie de fantasma, fantasma de um regime passado, fantasma de um país que doravante já não seria o mesmo. Este fantasma faz rir muitos transeuntes – todos aqueles que a câmara e o microfone de Kamal Aljafari registam, contando as suas impressões sobre o edifício, as memórias, muitas vezes estranhas, bizarras, do tempo em que estava activo, e percebe-se que ele já era alvo de um certo culto dos genebrenses muito antes da desactivação. São estes transeuntes e vizinhos a “voz” do filme, que é como a

“descrição dum edifício”, de um edifício que nunca é esventrado pela câmara de Aljafari. O realizador fica sempre de fora, os aspectos do interior esvaziado aparecem por norma filmados através das vitrines, e os reflexos e os efeitos da luz e da sombra dessas imagens captadas com as vidraças de permeio até adensam a propriedade fantasmática do edifício, a sua qualidade de ruína intacta.

O “raccord” na passagem de Visit Iraq para Port of Memory, com aquele plano inicial muito bonito (um movimento de câmara por fachadas de edifícios, cheios de rachas na pintura e outras marcas do tempo e da falta de manutenção), é perfeito. Mas o tom é, inapelavelmente, outro. Estamos em Jaffa, cidade portuária da Palestina que já teve uma população árabe vibrante mas que está hoje reduzida a uma proporção esmagadora: 3000 habitantes árabes contra 500 000 habitantes israelitas (dados demográficos encontrados na internet), os primeiros sempre na iminência de serem cada vez menos, os segundos na iminência de serem cada vez mais. Port of Memory, de certa forma, é um filme sobre esses 3000 – Visit Iraq era que sobre gente que se foi embora, Port of Memory é sobre gente que fica.

Na literatura em que procurámos perceber melhor o contexto do filme encontrámos uma ideia que nos parece capital nele. O sumud, palavra que pode ser traduzida por “teimosia”, e que ganhou consistência política no final dos anos 60 entre os intelectuais palestinos. Significava, contra todas as pressões, contra a enorme pressão militar, política e demográfica imposta por Israel às cidades árabes, a recusa de ir embora, a obstinação de ficar. Nestas condições, como escreveu alguém “existir tornou-se uma forma de rebelião, habitar uma casa tornou-se um acto revolucionário”, e resumidamente isto era (é) o sumud. Não espanta, por isso, que o filme de Kamal Aljafari se concentre num punhado de figuras humanas (uma pequena família) que existem e habitam, e que isso, existir e habitar, seja praticamente toda a acção que importa mostrar. Os planos de Aljafari são sugestivos e poderosos, fragmentos de tempo e de espaço, dão uma espécie de languidez acossada e triste mas simultaneamente estóica, que nos parece, agora que descobrimos esta palavra, uma expressão pungente e melancólica do sumud. Aliás, politicamente pungente e melancólico é todo o filme, que redescobre algo que se diria caído em desuso, a função política da melancolia (algo que não deverá ser confundido com o fatalismo, mas que inevitavelmente anda na sua vizinhança: o filme não dá respostas, nem sugere que o sumud conduza a qualquer espécie de vitória, quase como se fosse apenas uma forma elegante, estética, de ir adiando o que, tristemente, continua a parecer inevitável). A melancolia e a ironia: aquelas imagens de um filme com Chuck Norris, Delta Force, a passar nos televisores (belo plano, o do gato esparramado em cima da televisão), um filme rodado em Jaffa onde os árabes são, obviamente, “terroristas”, é uma ideia quase thomandersoniana (género “Jaffa plays itself”) que sugere que o cerco não é apenas material, vem também por esse domínio desmaterializado das imagens – e que as imagens são justamente outra coisa que falta aos árabes de Jaffa. Port of Memory é um pequeno contributo para compensar isso, e construir uma imagem, cheia de obstinação, para os árabes de Jaffa.

Kamal Aljafari
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