UNDR + Recollection
by
Inês Sapeta Dias,
Cinemateca Portuguesa – Museu do cinema
A Cinemateca com o Indielisboa: Kamal Aljafari
24/31-05-2024
Cinemateca Portuguesa – Museu do cinema
A Cinemateca com o Indielisboa: Kamal Aljafari
24/31-05-2024
“Todas as rochas têm um nome” é uma das frases do texto que corre no fim de RECOLLECTION. Nesse texto descrevem-se os sítios de Jafa antes vistos, rarefeitos, no filme, e dão-se nomes a esses sítios: não propriamente os seus nomes oficiais, a toponímia, mas os nomes das pessoas que os habitam e que antes não vimos.
UNDR e RECOLLECTION, dois filmes feitos pelo realizador e artista visual palestiniano Kamal Aljafari, instalam-se como ruínas, silenciosas, esburacadas. Aproximam-se pela relação que estabelecem entre o que se vê e o que não é visível. Vazios deixados presentes na textura de ambos os filmes – sim, poderíamos dizer que são como dois tecidos, feitos de retalhos, pedaços de outros tecidos, e de buracos.
A imagem da ruína e desse tecido esburacado serve para descrever o gesto de Kamal Aljafari e o modo como manuseia as imagens que monta. Mas serve também para descrever o objecto com que o artista trabalha.
Em UNDR, feito só com imagens de arquivo, uma série de explosões mudam a face de rochas e de montanhas num terreno arenoso, desértico. Planos das mãos que dão corda aos detonadores rudimentares são intercalados com os planos das explosões. Destroços de cidades são justapostos a maquetes dessas cidades. Essa continuidade entre o que será e o que já não é resume bem o movimento paradoxal e expectante em causa na ruína (em qualquer ruína): aquilo que no presente indica um passado que já não existe e aquilo onde se projecta e onde se espera um futuro daquilo que pode vir a ser. Uma ruína é ao mesmo tempo
o sinal de uma ausência (do que foi) e o sinal de um desaparecimento (o que é, que dará lugar ao que virá). É nesse circuito que, subtilmente, se instala o filme.
RECOLLECTION, também feito só com imagens de arquivo, é uma circulação por imagens de Jafa, a parte mais antiga de Tel Aviv, uma das cidades portuárias mais antigas do mundo antigo (então chamada Jopa). É uma circulação literal, mas óptica: através de zooms, panorâmicas suaves em várias direcções, pequenos, quase microscópicos loops, feitos dentro de imagens fixas ou em movimento, os olhos e as mãos de Kamal Aljafari circulam dentro da superfície das imagens e criam percursos no arquivo com que mexe – longas-metragens israelitas e americanas feitas na cidade de Jafa entre 1960 e 1990, diz a sinopse do filme. Nos primeiros planos as pessoas são apagadas (vê-se o seu apagamento) e depois a imersão na textura do pixel ou do grão da imagem, torna as linhas das casas difusas, e as pessoas que começam a aparecer, aparecem como vultos, sem feições, irreconhecíveis – não estão tapadas ou deformadas, como nas reportagens jornalísticas; é a aproximação do olho sobre elas que as distorce.
O manuseamento das imagens esvazia e arruína a cidade. Sucedem-se restos de uma vida rarefeita – que volta a ser preenchida e à qual são dados corpo e nome no texto com que o filme fecha – uma rarefacção que, por ser óptica, toma a forma de uma miragem. É uma boa imagem para a memória que dá título ao filme, essa da miragem: feito com imagens tiradas de filmes de outros, o filme cria uma memória sobre aquilo que não é material rememorativo. É uma lembrança criada sobre imagens que não lembram.
“Para um homem que já não tem país, escrever torna-se um lugar para viver. Para um palestiniano, o cinema é um país”.
Nesta declaração do realizador está a relação que ambos os filmes desta sessão estabelecem com o arquivo: o arquivo é (ainda, cada vez mais) a única maneira de Kamal Aljafari voltar à sua terra. Um arquivo que justamente não é o seu.
No regresso, na memória dessa terra, o realizador projecta vidas lembradas nas imagens onde essas vidas não estão. Nesse trabalho, distorce perspectivas, altera o centro da imagem e os sítios de onde olha – na sinopse de RECOLLECTION fala-se de um trabalho de readequação das imagens à “perspectiva do eu”.
Dizem-se muitos nomes, de muitas pessoas no texto que fecha esse filme. Descrevem-se os seus hábitos, as suas acções, os modos particulares como habitam cada espaço – e damos por nós a tentar lembrar-nos e a tentar identificar isso que está descrito no que antes vimos. Mas que não está lá. “Uma imagem dura mais do que um ser humano”, diz-se a certa altura nesse mesmo texto. É sobre a paradoxal permanência de uma ausência, e sobre a memória como coisa que se projecta, que o filme trabalha – e nisso também ele se aproxima daquilo que é sugerido pela ruína.
Em RECOLLECTION, entre o movimento sobre a imagem e o movimento da imagem, os nossos olhos hesitam e por vezes só um pequeníssimo detalhe, quase imperceptível, denuncia a imagem que se mexe. Logo no início, quando as pessoas são apagadas, e ficamos apenas com os traços difusos de uma cidade arruinada, começamos a concentrar-nos nalgumas manchas brancas que vão pontuando o enquadramento. Pouco a pouco percebemos que mexem e esse movimento torna-se cada vez mais violento, percebemos que são roupas estendidas agitadas por um vento cada vez mais forte. Essa imagem de roupas lavadas estendidas no meio de ruínas vazias é uma imagem muito forte para o gesto de recuperação, de rememoração de que trata o filme. De que tratam os dois filmes, aliás, ambos regressos a uma terra a que não se pode regressar.