Paradiso, XXXI, 108 + A Fidai Film
by
Ricardo Vieira Lisboa ,
Cinemateca Portuguesa – Museu do cinema
A Cinemateca com o Indielisboa: Kamal Aljafari
24/31-05-2024
Cinemateca Portuguesa – Museu do cinema
A Cinemateca com o Indielisboa: Kamal Aljafari
24/31-05-2024
Segundo os esquemas canónicos através dos quais se cristaliza e historiografa a produção cinematográfica (mesmo aquela que ativamente procura escapar a todo o tipo de convenções e formatações estáticas e narrativos), o filme seminal do cinema de apropriação é A Movie (1958), de Bruce Connor. É sabido que as práticas da apropriação (vulgo cinema found footage) já vinham de longe, ora de forma parcial, ora mesmo de forma integral, como é o caso de Rose Hobart (1936), de Joseph Cornell, que o próprio guardaria na gaveta após uma única exibição pública nos anos 1930, voltando a mostrá-lo já só na década de 60. Começo por fazer esta referência a A Movie porque não pude deixar de pensar nele, mais do que uma vez, ao longo da exibição de Paradiso, XXXI, 108. É claro que o método de Connor está mais próximo de uma atitude neo-Dada, onde o que mais interessa é o choque dos materiais e a disrupção das expectativas (ligar à imagem de um teste nuclear um alegre surfista). Quanto a Kamal Aljafari, o propósito de re-apropriação e re-contextualização das imagens de arquivo tem um intuito primeiramente revelatório. Posto doutro modo: para Connor, o conteúdo das imagens apropriadas serve, acima de tudo, para expor as estruturas e as convenções do cinema de Hollywood, ao passo que para Aljafari, é precisamente o conteúdo que importa mostrar, ou melhor, difundir.
Porém, se os pressupostos estéticos e políticos de ambos são muito distintos, estou em crer que Aljafari tem, por Connor, uma convicta admiração e que Paradiso trabalha – até certo ponto – uma certa abordagem (auto-)referencial. Mais não seja pelo modo como se interessa especificamente por imagens bélicas (e dentro destas, por imagens aéreas) e como utiliza os raccords de olhar para construir meta-narrativas que cosem os múltiplos materiais convocados. Mas, mais que isso, onde me parece notória a consciência de uma citação é no modo como Kamal Aljafari introduz – uma e outra vez – o título “Paradiso, XXXI, 108” ao longo filme, sempre recorrendo a diferentes fontes tipográficas. Esse é, eventualmente, o mais violento dos gestos formais que Connor ensaiava em A Movie, chamando, sistematicamente, a atenção do espectador para a natureza “fílmica” do filme – passe-se o pleonasmo. Uma e outra vez, Connor introduzia cartões negros, introduzia cartões com “The End” (logo após mira técnica) e introduzia os cartões titulares ao longo do movie. Esse gesto, que o cineasta palestiniano repete em Paradiso, aproxima-se de um carimbo (de uma “marca d’água”?), que alerta para a contemporaneidade do gesto de recontextualização destas “imagens do passado” (que são vividas como do presente).
Mas, afinal, a que se refere este enigmático título? Trata-se de uma referência bibliográfica. O título refere-se ao livro Paradiso, canto 31, verso 108, a terceira e última parte da Divina Comédia de Dante. O verso corresponde a uma reflexão sobre a impressão do rosto de Cristo no manto de Verónica e traduz-se, aproximadamente, como “a vossa aparência era semelhante a esta?”. Diante desta explicação, começa a clarificar-se o propósito do gesto do realizador palestiniano: o cinema é um “manto de verónica”, uma impressão (no sentido mecânico) da realidade, mas ainda assim, distante desta. O questionamento de Dante sobre o intervalo que existe entre o rosto de Cristo e a sua transferência imagética, manifesta-se, aqui, num questionamento sobre a produção de imagens de propaganda. Paradiso, XXXI, 108 compõe-se, integralmente, de filmes de produção israelita das décadas de 1960-1980 onde se constrói uma imagem de poderio militar (manobras bélicas com tanques e inúmeras aeronaves, entre outras parafernálias militares) que se fica pela pujança do combate armado, obliterando em absoluto as consequências humanas de toda aquela máquina de morte. O que surpreende, portanto, nesta curta-metragem de Kamal Aljafari é a forma como este – pela exaustividade da recolha e da montagem – consegue dar a ver uma ausência, consegue mostrar o que as imagens ativamente ocultam. Daí ter defendido que há um desejo de revelação no gesto de apropriação do realizador.
É igualmente da ordem de revelação (ainda que através de mecanismos diferentes) que se organiza o seu mais recente filme, A Fidai Film. Ao contrário de Paradiso, onde o sentido da apropriação se faz apesar do filme, em A Fidai Film Kamal Aljafari expõe – de forma subtil e enigmática – o projeto de reaquisição e devolução das imagens que nos apresenta. Durante uma invasão do sul do Líbano, em 1982, as Forças de Defesa de Israel (FDI) confiscaram o imenso arquivo fílmico e fotográfico do Palestine Research Center, que se encontrava em Beirute. A Fidai Film é um filme que resgata essas imagens dos arquivos militares do Ministério da Defesa Israelita, procurando assim participar na reconstrução, não tanto do país, mas do seu imaginário coletivo. No entanto, Aljafari não se limita a produzir um filme de compilação (subgénero do cinema de found footage típico dos anos 1980 e 90), ele propõe um filme que faz, simultaneamente, a apresentação das imagens e o questionamento das suas condições materiais, do seu arquivamento, das suas formas de representação e da sua relevância.
O que o realizador dá a entender é que faz parte dos métodos da FDI a apreensão destes materiais – que vêm sendo confiscados desde os anos 50 – como uma forma de praticar uma guerrilha cultural, onde se nega o direito à memória e à pertença cultural de um povo através das imagens que fundam o seu imagiário comum. O realizador percebe que, além de simplesmente devolver as imagens, importa refletir sobre os modos através dos quais se opera a construção dessa identidade nacional. Para isso constrói, então, um panorama visual sobre a história (áudio)visual do país, correndo os registos fílmicos, desde o período da ocupação britânica (nos anos 1920 e 30) até ao final do século XX (revisitando assim muitas das tais imagens apreendidas). Desprovidos das suas imagens, a tradição oral (e escrita) impõe-se. A Fidai Film procura entrecruzar estas duas práticas, inspirando nas imagens as múltiplas subjetividades que entretecem uma comunidade. Fá-lo, em particular, a partir da recorrente lengalenga infantil e das imagens de crianças que comentam a “ação principal”. Mas também através das consequências da guerra como metáfora para a situação das imagens: a primeira fala do filme diz, precisamente, “já não consigo ver” – referindo-se às consequências de uma carta armadilhada – mas trata-se de uma observação sobre a ocultação dos arquivos; o mesmo acontece quando se relata o sofrimento de uma mulher amputada e a sua sensação de phantom limb.
Ainda assim, o propósito maior de Aljafari é expor os mecanismos de opressão do povo palestiniano, que se traduzem na apreensão das referidas imagens, mas também – e aí está a ironia da operação – no arquivamento feito pelas forças israelitas. De facto, um arquivo carrega sempre uma ideologia (o modo como está organizado, como destaca um aspeto sobre o outro, como releva um documento e esquece os demais…) e A Fidai Film é tanto um filme feito com imagens de arquivo, como um filme sobre o arquivamento (ou o re-arquivamento) dessas imagens. Ao ponto de, já perto do final, o seu método de rasura (Aljafari risca a vermelho as inscrições israelitas sobre as imagens – uma estratégia que já havia experimentado em It’s a Long Way From Amphioxus, de 2019) se aproximar dos riscos, poeiras e raspagens próprios da usura da película de cinema. Como se riscar as marcas do re-arquivamento israelita fosse só mais uma das naturais consequências do tempo. Como se a restituição das imagens fosse uma inevitabilidade. No final lê-se “a câmara dos desapossados”. Parece-me que Kamal Aljafari se refere ao tempo, essa câmara (de revelação) que, mais cedo ou mais tarde, devolve tudo à procedência.