May 28th 2024
Film Review
ESP/ENG
by Pedro Azevedo
on colo
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ESP
"A Fidai Film" resgata e reinterpreta dados e imagens do passado para se conectar ao presente. No calor da escalada do processo de limpeza étnica e genocídio mais fartamente documentado na história moderna, Kamal Aljafari revisita arquivos audiovisuais dos anos 40 a 80 para mais uma vez materializar a história de violência secular contra o povo palestino. Trata-se de um filme de montagem e de intervenção no arquivo. A textura das imagens, que transitam entre película 16mm e 35mm e o vídeo analógico, são marcadores visuais importantes e dão algumas pistas sobre a passagem do tempo, mas a articulação das sequências, quando justapostas, embaralha qualquer linearidade temporal que se possa antecipar. Se o tempo for um plano onde podemos vagar entre os escombros, o extermínio de hoje é eco da violência de ontem.
Chama a atenção um certo rigor formal e a ética com a qual Aljafari manipula os arquivos que compõem o filme. Do rastro escarlate que tinge rostos, corpos e diálogos entre colonos e palestinos, aos focos de incêndio que pontilham as janelas, o cineasta manipula as imagens na tela, evitando a armadilha da transparência, da legibilidade inequívoca e da assimilação fácil. Em "A fidai film", a operação em curso é profundamente devedora da manipulação das imagens. O autor, como montador,não nega a insuficiência do documento e do registro imagético como testemunho fiel da história; pelo contrário, ele a reafirma, rasgando as camadas de leitura e sentido que são inerentes à experiência da imagem. O conhecimento dos meandros da história não está contido em uma única imagem, assim como a imaginação não se limita a uma única representação. Ambos se movimentam, se conectam e exploram as diversas ambiguidades em um processo de diálogo contínuo e dinâmico.
Para discutir a ética das imagens no documentário, bastaria retomar as experiências de trabalhos como "A imagem que falta" e "Iradiance", de Rithy Pahn. Suas abordagens radicalmente distintas apresentam formas ou dispositivos de visibilidade que amplificam e redistribuem a violência contida na imagem. No ensaio que encerra "O espectador emancipado", Rancière ¹ se refere às imagens como elementos de um dispositivo que contribuem para a construção e o apaziguamento do senso comum, entendido como um conjunto de dados sensíveis compartilhados. Esses dados abrangem tanto as coisas visíveis a todos, quanto os modos de percepção e as significações atribuídas a elas. O problema da partilha e da ação política a partir das imagens aplica-se tanto aos filmes citados quanto a "A fidai film". Não se trata da capacidade de introjetar a violência do genocídio nos limites da imagem, seja ela documental ou ficcional,mas de como e por meio de qual dispositivo de visibilidade apresentá-la, para quais públicos e quais tipos de engajamento ela pressupõe.
A crítica à espetacularização da violência e a ideia de que certos aspectos da realidade são irrepresentáveis geram um afastamento e desconfiança na real capacidade de agência política das imagens. Estamos falando do filme documentário e da artesania da montagem para restituir justiça e refazer sentido no arquivo. Para retrabalhar as ideias de Rancière ², partiremos do pressuposto de que o conjunto de imagens e sons do filme não servem exatamente como armas, mas colaboram para novas formas de ver e pensar, abrindo um novo horizonte de possibilidades, ainda que os seus significados e efeitos não possam ser antecipados.
Em novembro passado, na Bienal de São Paulo intitulada "Coreografias do Impossível", tive o primeiro contato com a videoinstalação "A câmera dos despossuídos” de Kamal Aljafari, cujas imagens de arquivo comporiam o documentário. Se a ética das imagens, na redistribuição e endereçamento da violência ao espectador, reside no trabalho e retrabalho do dispositivo de visualidade, o cineasta palestino demonstra sensibilidade e fluência ao apresentar suas obras em diferentes formatos. A desestabilização da perspectiva linear ³, com seu olhar calculado e previsível, diante da proliferação de telas e distrações contemporâneas, adiciona complexidade a "A fidai film". Seja em telas de cinema, computador, celular ou na tridimensionalidade de uma instalação, o trabalho de Aljafari é um belo exercício (político) audiovisual com e para as imagens de arquivo.
Este site apoia firmemente a recuperação dos territórios palestinos no Oriente Médio e o reconhecimento formal do Estado da Palestina por parte das nações árabes. Condenamos inequivocamente os crimes de guerra, as violações de direitos humanos internacionais e o genocídio em curso contra o povo palestino perpetrado pelo estado de Israel
ENG
"A Fidai Film" rescues and reinterprets data and images from the past to connect with the present. In the context of the escalating ethnic cleansing and genocide, the most documented in modern history, Kamal Aljafari revisits audiovisual archives from the 1940s to 1980s to materialize the history of secular violence against the Palestinian people. It is a film of montage and intervention in the archive. The texture of the images, which transition between 16mm and 35mm film and analog video, are important visual markers and indicate the passage of time, but the articulation of the sequences scrambles any temporal linearity. If time is a plane where we can wander among the rubble, today's extermination echoes yesterday's violence.
The formal rigor and ethics with which Aljafari manipulates the archives are striking. From the scarlet trace that stains faces, bodies, and dialogues between settlers and Palestinians, to the fires that dot the windows, the filmmaker manipulates the images, avoiding the trap of transparency and easy assimilation. In "A fidai film" the ongoing operation is deeply indebted to the manipulation of images. The author, as an editor, does not deny the insufficiency of the document and the imagetic record as a faithful testimony of history; on the contrary, he reaffirms it, tearing the layers of reading and meaning inherent to the experience of the image. Knowledge of history is not contained in a single image, just as imagination is not limited to a single representation. Both move, connect, and explore ambiguities in a continuous dialogue.
To discuss the ethics of images in documentary, it would be enough to revisit works like "The Missing Picture" and "Iradiance" by Rithy Pahn. Their distinct approaches present forms of visibility that amplify and redistribute the violence contained in the image. In the essay that concludes "The Emancipated Spectator," Rancière refers to images as elements that contribute to the construction and appeasement of common sense. The problem of sharing and political action from images applies to both the films cited and "A fidai film." It is not about the ability to introject the violence of genocide within the limits of the image, but how and through which device of visibility to present it, to which audiences, and what types of engagement it presupposes.
The critique of the spectacularization of violence and the idea that certain aspects of reality are unrepresentable generate distrust in the real capacity of political agency of images. We are talking about documentary film and montage to restore justice and remake meaning in the archive. To rework Rancière's ideas, we will assume that the images and sounds of the film do not exactly serve as weapons, but collaborate for new ways of seeing and thinking, opening a new horizon of possibilities.
Last November, at the São Paulo Biennial, I had my first contact with the video installation "The Camera of the Dispossessed" by Kamal Aljafari, whose images would compose the homonymous documentary. If the ethics of images, in the redistribution and addressing of violence to the viewer, resides in the work and reworking of the device of visuality, the Palestinian filmmaker demonstrates sensitivity in presenting his works in different formats. The destabilization of the linear perspective in the face of the proliferation of contemporary screens and distractions adds complexity to "A fidai film". Whether on cinema screens, computers, cell phones, or in the three-dimensionality of an installation, Aljafari's work is a beautiful (political) audiovisual exercise with and for archival images.
[1] RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
[2] RANCIÈRE, Jacques. A imagem intolerável. In: RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 83-104.
[3] STEYERL, Hito. In Free Fall. e-flux journal, n. 24, p. 1-9, 2011.