It’s a Long Way from Amphioxus + An Unusual Summer



by Joana Ascensão, 
Cinemateca Portuguesa – Museu do cinema

A Cinemateca com o Indielisboa: Kamal Aljafari


24/31-05-2024
“Os meus filmes são como uma arqueologia da memória, escavando as narrativas esquecidas, enterradas sob a superfície da vida quotidiana.”

Kamal Aljafari


Realizador de origem palestiniana nascido em 1972 na cidade de Ramla e radicado há vários anos na Alemanha, Kamal Aljafari tem desenvolvido nas últimas duas décadas uma obra cinematográfica que parte em grande medida da sua história pessoal no seu cruzamento com a história do povo palestiniano. Trata-se de um cinema de resistência que reflecte sobre a situação da Palestina e os mecanismos de poder subjacentes às realidades que retrata. Um cinema feito de invisibilidades, em que se acentua uma progressiva abstracção, devolvendo-nos algo que está muitas vezes no limite da figuração, mas ancorado numa realidade bem concreta. O ponto de partida é a Palestina, território ocupado e em ruínas, que está neste momento a ser alvo de um ataque sem precedentes por parte do Estado de Israel, mas também um quotidiano cujo registo é transformado com frequência pela imagem electrónica, em que ganham relevo os pixéis, a degradação, ou a manipulação digital das imagens, como poderemos constatar nos dois filmes que compõem esta sessão.

Filmado numa fria sala de espera de uma instituição de imigração berlinense, It’s A Long Way From Amphioxus mostra como aí tudo é reduzido a uma burocracia desumana. Kamal Aljafari documenta a transformação de pessoas em números, que mais tarde se imaterializam enquanto espectros electrónicos que circulam pelos corredores. Momento inesperado num filme quase sem diálogos, “cuja chave” talvez esteja numa breve conversa entre uma velha senhora e um homem jovem, que com ela partilha a longa espera.

– O que estão eles a distribuir aqui? – pergunta ela.

– Números – responde ele.

– Pensei que estavam a distribuir comida.

Um diálogo bem demonstrativo da realidade sem sentido a que são sujeitos homens e mulheres e crianças de todas as idades em tal gabinete de imigração, onde se vive uma espera marcada pelo tempo lento, particularmente penoso para as muitas crianças, às quais serão disponibilizados brinquedos também eles sujeitos a um controlo quase policial.

Mas “It’s A Long Way From Amphioxus” é também o título de uma canção dos anos 1920 que se refere a uma criatura designada como “anfioxo”, que na altura se pensava erroneamente que estaria na origem da evolução dos vertebrados. Tal revela bem a ironia do cinema de Aljafari no seu questionamento do tempo presente e do “caminho que fizemos para aqui chegar”. Uma realidade em que as pessoas se reduzem a números, que no filme se transformam numa amálgama liquefeita semelhante ao sangue que corre nas nossas veias. Metáfora forte que assume particular relevância no contexto da cruel actualidade e do genocídio que está a ser cometido na Palestina.

Em An Unusual Summer, filme realizado no ano seguinte, Aljafari parte de imagens filmadas em 2006 pelo seu pai com uma câmara de vigilância, cujo propósito era descobrir quem lhe partia recorrentemente o vidro do carro enquanto este estava estacionado frente a casa. Gesto de recuperação do que podemos considerar como found footage que culmina no registo dos movimentos diários do bairro em que nasceu, seja o movimento quotidiano dos seus vizinhos, seja o movimento da própria família, que comparece amiúde face à câmara. Mais de dez anos depois das filmagens, e cinco anos depois da morte do seu pai, Kamal Aljafari parte destas imagens de muito baixa qualidade registadas em cassetes vídeo e encontradas ao abandono para construir uma narrativa que ilustra a vida naquele bairro palestiniano em Ramla, cidade ocupada por Israel em 1948, cujos habitantes designam como “gueto”.

Num filme cuja banda sonora desempenha um papel essencial, o realizador revisita e comenta os pequenos acontecimentos revelados nas imagens e nos sons que as acompanham, mas também a história mais ampla de uma comunidade imersa num longo conflito permanente e sujeita a uma violência sempre presente. Ouvem-se tiros, mas a vida à sua (e à nossa) frente continua aparentemente a decorrer com normalidade. Entre comentários e desabafos de foro muito pessoal, que em grande parte se inscrevem em intertítulos, e outros que descrevem os movimentos diários daqueles que se cruzam face à câmara, Aljafari constrói uma história complexa a que não é alheio o suspense subjacente à tentativa de identificação do responsável por tantos vidros estilhaçados.

Partindo daquele Verão invulgar, em que, contrariando todas as expectativas, choveu muito, An Unusual Summer é invulgar em muitos outros sentidos. Aqui, como no filme anterior, uma imagem vídeo (e a chuva real) transforma-se numa abstracção electrónica, mancha acompanhada por uma música cristalina que aborda a história “de uma guerra que está a ser travada há muito, muito tempo”. Como afirma o realizador a dada altura “Na câmara do meu pai todos têm a possibilidade de existir”, ou como poderíamos dizer, “tudo tem a possibilidade de existir”. “A vida tem de ser interrompida para ser revelada”, lê-se num dos cartões do filme. Dedicado à memória do pai, há uma nostalgia que impregna estas imagens resgatadas do fluxo da vida, comentadas pela voz do realizador e de uma sobrinha, já depois da morte de quem as registou. Um fantasma entre outros fantasmas do presente, condenados à não inscrição numa região em plena destruição.
Kamal Aljafari
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