Balconies + O Tecto



by Antonio Rodrigues, 
Cinemateca Portuguesa – Museu do cinema

A Cinemateca com o Indielisboa: Kamal Aljafari


24/31-05-2024
Os Palestinianos não existem.
Golda Meir, 1990


O inacreditável grau de sadismo do pogrom que está em curso em Gaza há sete meses (que está longe de ser o primeiro e matou mais pessoas do que a ditadura argentina de 1976-82, a mais sanguinária da América do Sul em todo o século XX, conseguiu eliminar em seis anos) contribui indiretamente para ressaltar as virtudes formais do cinema de Kamal Aljafari. Nos antípodas do cinema de informação, de militância e até de análise política direta, os dois filmes que compõem esta sessão ilustram aquilo a que Serge Daney chamou o “sentido sepulto” do cinema: o sentido daquilo que vemos no decorrer desta sessão está por detrás das aparências, uma casa demolida ou a ausência de aviso sonoro numa passagem de nível num bairro árabe sintetizam três quartos de século de opressão colonial por parte da “única democracia do Oriente-Próximo”. Quem duvidar da assumida violência colonialista e racista de parte do projeto sionista deve pedir que a Cinemateca programe na rubrica “O Que Quero Ver” Sabra (1933), de Aleksander Ford. Os dois filmes que compõem esta sessão complementam-se perfeitamente bem e por isso faz todo o sentido que tenham sido programados juntos: no primeiro vemos quase exclusivamente ruas vazias e no segundo pessoas que habitam espaços como aqueles, onde são tratados como estrangeiros na sua própria terra, como sempre é o caso numa situação colonial.

Balconies é uma digressão melancólica por um espaço onde vive parte da família do realizador. Ao longo do filme quase não se vêem pessoas, a tal ponto que a cidade

mostrada parece estar sob toque de recolher. Praticamente só vemos casas, cujos habitantes perderam o seu lar nacional, algumas das quais estão certamente destinadas a serem demolidas por aqueles que negam aos palestinianos o direito de existirem ou até mesmo o facto de existirem (veja-se a célebre frase de Golda Meir citada em epígrafe): casas demolidas porque um membro da família que as habitam milita contra a opressão dos seus, atirando pedras a uma patrulha, por exemplo. O filme é um excurso discreto, quase furtivo, do qual emerge a silhueta de todo um povo cuja existência é obliterada. Os oito minutos de Balconies são como o desenrolar de um dia, de mil dias em que nada se passa, a não ser a espera de que aquilo passe.

“O Tecto” desenvolve inteligentemente em uma hora de cinema aquilo que é resumido em Balconies. Como o daquele filme, o título desta longa-metragem refere-se a um componente de uma casa, porém tecto tem um sentido mais vasto do que este: em mais de uma língua, entre as quais a portuguesa, a palavra tecto designa, por sinédoque, uma casa, um lugar onde se pode viver e no filme de Kamal Aljafari a noção de casa aplica-se menos a uma edificação do que ao usurpado espaço nacional palestiniano, cujos habitantes originais são tratados como intrusos em nome de um raciocínio historicista especialmente absurdo e mentiroso, porque à falácia historicista acrescenta-se a religiosa. Por conseguinte, a noção de casa, nos dois sentidos do termo, está no cerne deste filme, que abarca de modo direto o passado (a nakba de 1948) e de modo indireto o presente, feito de assédio permanente: apartheid, tortura legalizada, vergéis arrancados, crianças impedidas de irem à escola, fornecimento de mão-de-obra barata, obrigação de consumir produtos feitos pelo opressor (e ainda há quem se espante que esta população entre em explosão de tempos em tempos). Aljafari, no entanto, não se aventura a dar qualquer indício sobre o futuro. Em certas passagens, a mesquinharia do opressor tem contornos quase infantis, como na imagem, nas ruas esburacadas e não asfaltadas de um gueto árabe, de uma estrela de seis pontas em cujo centro está desenhado um sorriso, como uma criança que mostrasse a língua de modo permanente aos passantes.

Os filmes de Kamal Aljafari, sem nada terem de rígidos, são muito bem estruturados - trata-se nitidamente de um realizador metódico - e “O Tecto” não é exceção. Por isso é pena que não tenham sido legendadas as canções que pontuam o filme e que não foram evidentemente escolhidas ao acaso e certamente comentam indiretamente aquilo que vemos ou ouvimos. O filme começa com um depoimento do próprio Aljafari, cujo rosto não vemos, sobre a sua experiência numa cadeia israelita, o que deve ser relativamente comum entre a juventude palestiniana e concentra e exacerba aquilo que estas pessoas têm de aturar dia e noite a partir do momento em que nascem. A seguir, o realizador convive com a sua família paterna em Ramle (não confundir com Ramallah) e com a sua família materna em Jaffa, cada qual com a sua experiência específica da nakba (o mar agitado impediu que parte da sua família se refugiasse no Líbano e foram condenados a passar o resto da vida no inferno sionista) e do presente, feito da vontade de fazer como se os palestinianos não existissem, exceto para explorá-los ou matá-los quando levantam a cabeça. Alguns conhecidos elementos da “questão palestiniana” ganham uma dimensão muito forte neste filme, que tem um efeito de lupa: o momento em que Aljafari e uma mulher da sua família, que quer tornar-se juíza, caminham ao longo do muro de separação erigido por Israel, sublinha a monstruosidade da ideia que está por detrás deste muro (construído por pedreiros palestinianos, para aumentar a ofensa): o enjaulamento de uma população, a sua obliteração, a impossibilidade de proximidade física com o “outro”. O plano final, sobre o qual se desenrola o genérico, é inevitavelmente um muro, perfeita imagem do presente e do futuro do povo palestiniano.
Kamal Aljafari
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